Ágio resultante de reorganização societária pode ser abatido de impostos

29 de maio de 2018, 18h33

Por Fernando Martines

É lícito que uma empresa use da reorganização societária para diminuir seu passivo tributário. Com este entendimento, o juiz Thiago Scherer, da 16ª Vara Federal de Porto Alegre, acolheu recurso da siderúrgica Gerdau e anulou sanção imposta pelo Conselho Administrativo dos Recursos Fiscais (Carf) à empresa. “O cidadão e as empresas são, perante a lei, contribuintes, e não devotos do Estado, a ponto de se submeterem a quaisquer imposições ilegítimas”, escreveu o juiz.

A empresa registrou como prejuízo a “receita” gerada pelo ágio resultante da incorporação de uma empresa do mesmo grupo societário. Nesses casos, ágio é o valor pago a mais numa operação de fusão ou aquisição com base na expectativa de valorização da companhia comprada. Essa operação pode ser registrada como despesa, o que reduz o valor de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica e a Contribuição Social sobre Lucro Líquido.

A decisão é um capítulo favorável aos contribuintes na disputa da Receita Federal contra a Lei 9.532/1997. A norma, editada durante o governo Fernando Henrique Cardoso para estimular a privatização de estatais, permite que empresas abatam de IRPJ e CSLL o ágio pago nas compras das estatais, com base no cálculo da valorização.

Pelo menos desde 2008, o Fisco vem defendendo que esse abatimento só seria permitido em operações de compras, e não de incorporações com o objetivo de reorganização societária. Nesses casos, diz a Receita, o que há é “ágio interno”, uma operação “sem fim negocial”, feita apenas para pagar menos impostos.

Tributaristas, entretanto, afirmam que a tese da Receita declara ilegal o que a lei não proíbe, e por isso não faz sentido.

O Conselho Superior de Recursos Fiscais, última instância interna do Carf, já decidiu a favor da tese da Fazenda. Mas, segundo o juiz Scherer, as empresas são livres para utilizar brechas e lacunas da lei que possibilitem manobras legais para pagar menos impostos.

Na opinião do magistrado, a Receita pretende, com a tese, confundir elisão fiscal (planejamento para pagar menos tributos) com evasão (deixar de cumprir obrigações tributárias por desídia) para aumentar a arrecadação. “Não se pode confundir elisão com evasão fiscal, diferenciadas pela adoção de uma conduta lícita ou ilícita, respectivamente, para atenuar o passivo tributário”, explicou. “Tampouco se poderia admitir tributação por uma interpretação tendenciosa ou voluntarista da legislação tributária.”

“Pelo contrário, o nosso sistema jurídico resguarda liberdade empresarial para a organização dos negócios, inclusive para a exploração de lacunas ou brechas legais que possibilitem economia lícita de tributos. Ao mesmo tempo que o contribuinte não pode se esquivar da cogência da lei tributária, utilizando-se de artimanhas, malícias, fraudes, simulações, dissimulações ou abuso, também não é exigido que pague mais tributos do que legalmente exigido.”

clique aqui para ler a decisão

A decisão teve repercussão no meio empresarial e tributaristas analisaram a sentença e as implicações do caso:

Fernando Moura, do Sacha Calmon-Misabel Derzi Consultores e Advogados 
“A decisão é duplamente importante. De um lado, porque estabelece a juridicidade do conceito de ágio para fins tributários, afastando considerações de ordem econômica e/ou contábil. De outro lado, porque reconhece o direito do contribuir de melhor organizar as suas atividades, ainda que com a finalidade de reduzir os tributos incidentes sobre a sua operação.”

Geraldo Mascarenhas DinizChenut Oliveira Santiago Advogados 
“O processo administrativo da Gerdau é amplamente conhecido, em função dos debates que despertou no CARF, que decidiu por voto de qualidade em desfavor do contribuinte. A sentença judicial tem grande relevância não somente porque favorável aos contribuintes, mas por trazer por fundamento principal o entendimento segundo o qual bastaria não haver práticas reconhecidamente ilícitas nas operações societárias, mesmo quando realizadas entre partes “dependentes”, para que seja juridicamente possível a amortização do ágio “interno” no saldo devedor do IRPJ e da CSLL. Fato é que o tema ainda despertará grandes debates em sede judicial, tendo em vista sua relevância nas operações societárias e a variedade de estruturas de cada uma delas.”

Ricardo Maitto Silveira, Rayes & Fagundes Advogados Associados
“O aspecto mais positivo da decisão, porém, é reforçar a ideia de que os contribuintes têm o direito de adotar práticas de planejamento tributário para reduzir o seu passivo tributário, desde que tais práticas não representem violação frontal à lei (fraude, simulação etc.). Essa linha de pensamento é muito importante para o debate em torno do aproveitamento fiscal do ágio, já que esclarece que a realização de operações com motivação exclusivamente tributária, mesmo sem propósito negocial, não são contrárias à lei.”

José Henrique Longo, PLKC Advogados
“A decisão se mostra de grande relevância, sendo um verdadeiro marco para o deslinde de uma questão que certamente representa um dos maiores contenciosos tributários do Brasil. Felizmente, parece que o Judiciário, ao contrário da prática reiterada do CARF, irá aplicar o comando da Lei.”

Rafael Palma Bifano, PLKC Advogados
“A Lei 9.532/97 trouxe uma regra tributária que permitiu antecipar a dedução de ágio pago, implicando em redução da carga tributária temporal. Descontente com reflexo tributário, a RFB buscou limitar as vantagens concedidas pela norma por meio de critérios extralegais. O CARF vem mantendo os lançamentos de ofício elaborados pela RFB sem base legal. É sofrível que tenha levado mais de vinte anos para que a confirmação de algo que é claro no  dispositivo legal. Isso certamente prejudicou muitos contribuintes que acreditaram no benefício legal e abalou a segurança jurídica no ambiente econômico brasileiro.”

Leonardo Castro, Costa Tavares Paes Advogados
“Excetuado o objetivo arrecadatório da Fazenda Nacional, não há fundamentação jurídica suficiente para suportar entendimento contrário ao da decisão da Vara Federal de Porto Alegre no caso em questão, que agiu bem no julgamento do mérito. Resta esperar que o Poder Judiciário, mas instâncias superiores, também aplique a Constituição Federal de forma correta neste caso.”

Fernando Martines é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 29 de maio de 2018, 18h33

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