O início da pandemia da Covid-19 no Brasil foi marcado por lockdown em grande parte dos estados.
No âmbito do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) suspendeu o expediente forense a fim de preservar a saúde pública dos cidadãos em geral (Resolução 313, de 19/03/2020).
Contudo, como a situação de calamidade não recuava, o anseio pela continuidade da prestação da tutela jurisdicional fez com que o Conselho Nacional de Justiça (Resolução Nº 322 de 01/06/2020) — e, consequentemente, todos os tribunais — buscasse ideias e soluções para viabilizar a continuidade do Poder Judiciário.
Além do trabalho em home office exercido pelos servidores públicos, o Poder Judiciário passou a realizar audiências por videoconferência, inclusive as de instrução e julgamento, até mesmo na esfera penal.
No entanto, como se sabe, o Direito Penal e o Processo Penal, entre outros, são regidos pelo princípio da legalidade.
Isso significa dizer, grosso modo, que precisa existir lei federal prevendo a possibilidade de realização de audiência de instrução e julgamento, na esfera penal, por meio integralmente remoto.
Contudo, apenas o interrogatório de réu preso, em caráter excepcional, é que possui previsão legal para ocorrer por meio de videoconferência, conforme artigo 185, §2º, do Código de Processo Penal (CPP), que assim prevê:
“Artigo 185 — O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)
(…)
§2º Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades” (Redação dada pela Lei nº 11.900, de 2009) (grifos do autor).
Com efeito, a manutenção da audiência de instrução exclusivamente virtual em processo que versa sobre réu solto, fere de morte o princípio da legalidade (estrita), porquanto a matéria requer previsão legal, emanada da União, conforme artigo 22, I, da CRFB/88, o que não existe até o momento.
Em linhas gerais, a audiência remota acarreta prejuízo porque o denunciado solto, longe do seu advogado, não poderá interagir simultaneamente com a defesa técnica durante a colheita da prova testemunhal, o que ofende o direito ao confronto no processo penal.
A par e passo, no momento do interrogatório, longe da defesa em que confia, o denunciado solto seria interrogado sem observância ao devido processo legal, direito constitucional inarredável, que não pode ser suprido por ato normativo, ainda que do Poder Judiciário.
O dano ao acusado é presumido e evidente, conforme já assentado pelo Pleno do STF:
“Quando se impede o regular exercício da autodefesa, por obra da adoção de procedimento sequer previsto em lei, tem-se agravada restrição à defesa penal, enquanto incompatível com o regramento contido no artigo 5º, LV, da Constituição da República, o que conduz à nulidade absoluta do processo, como a tem reconhecido este tribunal, à vista de prejuízo ínsito ao descumprimento da forma procedimental adequada (…)” (HC 90900, relator(a): ministra Ellen Gracie, Relator(a) p/ Acórdão: ministro Menezes Direito, Tribunal Pleno, j. em 30/10/2008)
Na mesma linha, destaca-se a interpretação conferida pelo STJ:
“(…) 3 — INDEPENDENTEMENTE DA COMPROVAÇÃO DE EVIDENTE PREJUÍZO, É ABSOLUTAMENTE NULO O INTERROGATÓRIO REALIZADO POR VIDEOCONFERÊNCIA, SE O MÉTODO TELEVISIVO OCORREU ANTES DA ALTERAÇÃO DO ORDENAMENTO PROCESSUAL, porquanto a nova legislação, apesar de admitir que o ato seja realizado virtualmente, ao mesmo tempo exige que se garanta ao agente todos os direitos constitucionais que lhes são inerentes. (…) 5 — Habeas Corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para anular o interrogatório do paciente, devendo outro ser realizado dentro dos ditames legais, bem como o processo a partir das razões finais” (HC 256.834/SP, relator ministro Jorge Mussi, 5° Turma, julgado em 19/3/2013, DJe 26/03/2013).
Assim, a fim de resguardar o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório (caros e indeléveis direitos constitucionais conquistados pelo cidadão brasileiro), e preservar o princípio da legalidade, imperioso registrar textualmente discordância à realização da instrução do processo penal de réu solto por meio virtual.
Nesse contexto, enquanto não promulgada lei federal, oriunda da casa legislativa competente, no sentido de prever e disciplinar a realização de audiência de instrução no processo penal que envolva acusado solto, revela-se de toda ilegal a realização dos respectivos atos.
André Eduardo Campos é advogado no escritório Dean Jaison Eccher Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 30 de julho de 2021, 19h19
https://www.conjur.com.br/2021-jul-30/campos-ilegalidade-audiencia-acao-penal-envolve-reu-solto