DANOS MORAIS PELA PERDA DO TEMPO ÚTIL

A proteção da pessoa humana, enquanto tema de principal importância para o ordenamento jurídico, vem ganhando espaço e relevância no Direito Civil contemporâneo, marcado pelo fenômeno da Constitucionalização, onde se defende a aplicação imediata das normas constitucionais nas relações particulares, consoante se colhe dos ensinamentos de Flavio Tartuce  (2016, p. 72):

Ora, a Constitucionalização do Direito Civil nada mais é do que um diálogo entre o Código Civil e a Constituição (Direito Civil Constitucional). Com isso se vai até a Constituição, onde repousa a proteção da pessoa como máxime do nosso ordenamento jurídico (personalização).

Para que essa proteção seja possível, deve-se reconhecer a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, que as normas que protegem a pessoa, previstas no Texto Maior, têm aplicação imediata nas relações entre particulares. A porta de entrada dessas normas protetivas, nas relações privadas, pode se dar por meio das cláusulas gerais (eficácia horizontal mediata), ou mesmo de forma direta (eficácia horizontal imediata).

Por conseguinte, o Código Civil é marcado por três paradigmas centrais:

  1. a eticidade, que proclama a observância dos valores éticos nas relações jurídicas;
  2. a sociabilidade, segundo a qual a autonomia da vontade e a propriedade privada passam a ser relativizadas pela função social;
  • a operabilidade, que consiste na facilitação para o exercício dos direitos, através de soluções viáveis e simples para a efetivação do direito nos casos concretos.

Neste sentir, observando-se ainda  o princípio da função social da responsabilidade civil, a doutrina e a jurisprudência vêm reconhecendo a existência de novos danos indenizáveis, dentre os quais se situa o dano moral pela perda do tempo útil.

Fulcrados nesta tese, os tribunais admitem a reparação civil de danos morais quando, em situações intoleráveis de mau atendimento, desídia e desrespeito, os consumidores são compelidos a sair de sua rotina e perder o seu tempo útil (ou livre) para solucionar problemas cotidianos causados por atos ilícitos ou condutas abusivas dos fornecedores de produtos ou serviços.

Por vezes, a usurpação do tempo livre pode se dar sob a aparência de exercício regular de direito por parte de determinada pessoa jurídica. No entanto, deve-se ter em mente que, de acordo com o artigo 187 do Código Civil, restará configurado o abuso de direito sempre que o seu titular exceder “os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

A propósito, vem a calhar o Enunciado nº 37 da I Jornada de Direito Civil e o Enunciado nº 414 da V Jornada de Direito Civil, que, com fundamento nos princípios da solidariedade, devido processo legal e proteção da confiança, classificam o abuso de direito como um ato ilícito objetivo:

37 – Art. 187: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.

414 – Art. 187: A cláusula geral do art. 187 do Código Civil tem fundamento constitucional nos princípios da solidariedade, devido processo legal e proteção da confiança, e aplica-se a todos os ramos do direito.

Em artigo publicado no ano de 2012, Vitor Guglinski discorreu sobre o dano moral pela perda do tempo útil, atentando para o reconhecimento desta hipótese de responsabilidade civil por parte da jurisprudência, bem como trazendo valiosa definição da lavra de Leonardo de Medeiros Garcia:

A ocorrência sucessiva e acintosa de mau atendimento ao consumidor, gerando a perda de tempo útil, tem levado a jurisprudência a dar seus primeiros passos para solucionar os dissabores experimentados por milhares de consumidores, passando a admitir a reparação civil pela perda do tempo livre. Sobre o tema, LEONARDO DE MEDEIROS GARCIA leciona:

“Outra forma interessante de indenização por dano moral que tem sido admitida pela jurisprudência é a indenização pela perda do tempo livre do consumidor. Muitas situações do cotidiano nos trazem a sensação de perda de tempo: o tempo em que ficamos “presos” no trânsito; o tempo para cancelar a contratação que não mais nos interessa; o tempo para cancelar a cobrança indevida do cartão de crédito; a espera de atendimento em consultórios médicos etc. A maioria dessas situações, desde que não cause outros danos, deve ser tolerada, uma vez que faz parte da vida em sociedade. Ao contrário, a indenização pela perda do tempo livre trata de situações intoleráveis, em que há desídia e desrespeito aos consumidores, que muitas vezes se veem compelidos a sair de sua rotina e perder o tempo livre para soluciona problemas causados por atos ilícitos ou condutas abusivas dos fornecedores. Tais situações fogem do que usualmente se aceita como “normal”, em se tratando de espera por parte do consumidor. São aqueles famosos casos de call center e em que se espera durante 30 minutos ou mais, sendo transferido de um atendente para o outro. Nesses casos, percebe-se claramente o desrespeito ao consumidor, que é prontamente atendido quando da contratação, mas, quando busca o atendimento para resolver qualquer impasse, é obrigado, injustificadamente, a perder seu tempo livre.

Diversas já são as decisões judicias que, ao longo dos últimos anos, entenderam pela viabilidade da reparação de danos morais oriundo da usurpação do tempo útil.

Observa-se sob este aspecto, que os danos morais, cujas definições doutrinárias e jurisprudenciais são no sentido de relacioná-lo à ideia de lesão a direito da personalidade ou a um interesse existencial merecedor de tutela, têm a sua reparabilidade prevista expressamente na Constituição da República, no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil.

Para a condenação por danos morais, não se faz necessária a comprovação do estado psicológico de dor, mágoa ou sofrimento por parte da vítima, devendo ser considerado, na condenação, as condições pessoais da vítima e do agressor, levando-se em conta o caráter reparador, pedagógico e punitivo da indenização.

Destarte, os tribunais pátrios vêm admitindo a reparação civil de danos morais pela perda do tempo útil (ou livre) quando os consumidores são compelidos a sair de sua rotina para solucionar problemas enfrentados em relações de consumo, causados por atos ilícitos ou condutas abusivas dos fornecedores de produtos ou serviços, sempre que evidenciadas situações intoleráveis de mau atendimento, desídia e desrespeito.

Assim, o atual posicionamento da jurisprudência sobre o tema se mostra compatível com a constitucionalização do Direito Civil, que apregoa a eficácia horizontal dos direitos fundamentais para possibilitar a efetiva proteção da pessoa humana no ordenamento jurídico.

Nesse aspecto, cabe referir o Enunciado nº 167 da III Jornada de Direito Civil, que, em referência aos artigos 421 a 424 do Código Civil (que tratam dos princípios da função social, probidade e boa-fé), chama a atenção para a proximidade principiológica existente entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil:

167 – Arts. 421 a 424: Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos.

Ao arremate, pode ser afirmado que o combate à usurpação do tempo útil do consumidor, ao reconhecer tal situação como capaz de ensejar um dano indenizável, é uma providência que vai ao encontro dos princípios da solidariedade, do devido processo legal e da proteção da confiança, evitando o abuso de direito, além de pautar as relações privadas com base nos paradigmas da eticidade, sociabilidade e operabilidade do Direito Civil.

 

Raquel Wollert

OAB/SC 17.234

Célula Cível

Faça um comentário