Promulgada no dia 10.1.2018, a Lei n. 13.606/2018, em linhas gerais, Instituiu o Programa de Regularização Tributária Rural (PRR) na Secretaria da Receita Federal do Brasil e na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Ainda, de forma pontual, maliciosamente alterou outros artigos de leis de assuntos diversos.
Travestida de benevolência, porque anunciada como facilitadora ao parcelamento de débitos fiscais rurais, a norma, analisada amiúde e a bem da verdade, releva verdadeira ofensa a direitos e garantias Constitucionais.
A fim de ilustrar o raciocínio supracitado, destaca-se, na íntegra, a maldosa, para não dizer arbitrária, redação do art. 25 da enunciada Lei, veja-se:
Art. 25. A Lei no 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 20-B, 20-C, 20-D e 20-E:
“Art. 20-B. Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados
- 1o A notificação será expedida por via eletrônica ou postal para o endereço do devedor e será considerada entregue depois de decorridos quinze dias da respectiva expedição.
- 2o Presume-se válida a notificação expedida para o endereço informado pelo contribuinte ou responsável à Fazenda Pública.
- 3o Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá:
I – comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e
II – averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis.”
“Art. 20-C. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá condicionar o ajuizamento de execuções fiscais à verificação de indícios de bens, direitos ou atividade econômica dos devedores ou corresponsáveis, desde que úteis à satisfação integral ou parcial dos débitos a serem executados.
Parágrafo único. Compete ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional definir os limites, critérios e parâmetros para o ajuizamento da ação de que trata o caput deste artigo, observados os critérios de racionalidade, economicidade e eficiência.”
“Art. 20-D. (VETADO).”
“Art. 20-E. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional editará atos complementares para o fiel cumprimento do disposto nos arts. 20-B, 20-C e 20-D desta Lei.” [destaques pessoais].
Como se pode ver, a antipática surpresa reside no conteúdo do inciso II do § 3º do referido artigo, segundo o qual, em suma e em paráfrase, a Fazenda Nacional passou a ter a autonomia, livre e desembaraçada, de tornar indisponíveis bens, móveis e imóveis, pertencentes ao contribuinte inadimplente e inscrito em dívida ativa.
Não se desconhece que a política-jurídica atual avança para a desjudicialização dos conflitos sociais – propósito, aliás, louvável e promissor, porquanto o Poder Judiciário enfrenta grandes dificuldades de fazer valer caros princípios constitucionais, v.g., celeridade e efetividade.
Todavia, não é possível aceitar que esse avanço seja disseminado a toque de caixa e, pior, ao alvedrio da Lei Maior, com flagrante desrespeito ao due process of law (CRFB/88, art. 5º, LIV) e ao direito de propriedade (CRFB/88, art. 5º, XXII), por exemplo.
E, nem se diga que o Direito Privado, ao contrário de questionável empoderamento concedido ao Fisco Nacional – que se encontra em posição de supremacia em detrimento do cidadão -, possua prerrogativa semelhantemente prevista no art. 828 do vigente CPC.
Diferentemente da Lei n. 13.606/2018, o art. 828 do Novo Código de Processo Civil não objetiva, ou melhor, não possui a prerrogativa, o PODER, de INDISPONIBILIZAR, voluntária e unilateralmente, propriedades móveis ou imóveis de devedores. O intuito desta norma é assegurar, ao credor, o direito de sinalizar a existência de uma demanda de execução nos registros de propriedades da parte demanda.
A Legis, portanto, possui somente a finalidade de publicitar a terceiros, até então detentores de boa-fé, a existência de uma demanda de execução contra o proprietário dos bens, cientificando-os de que não mais gozarão de tal prerrogativa na celebração de eventual negócio jurídico que diga respeito àquele bem.
Com efeito, necessário reconhecer que o legislador, frise-se, neste caso, acertadamente encontrou, dentro dos limites da legalidade e com estrita compatibilidade com a Lei Maior, a forma de alertar eventuais riscos que potencialmente circundam aquele bem gravado. No entanto, não impediu que, mesmo ciente, o interessado sacramentasse sua vontade sobre eles.
Idêntica sorte, contudo, não se observa no conteúdo do art. 25 da Lei n. 13.606/2018, cujo privilégio criado, reforça-se, é reprovável e inconstitucional.
Noutro giro, impende ressaltar que o art. 146 da CF/88 reservou à lei complementar a fixação de normas gerais relativas ao crédito tributário. E a garantia estampada na nova lei entra nessa categoria. Não poderia ser veiculado em lei ordinária, portanto. O problema é que agentes da burocracia fazendária já se têm posicionado no sentido de ser a disposição introduzida pela lei 13.606/18 um mero ”complemento” ao art. 185 da normativa tributária, por constituir a nova lei apenas uma modulação de efeitos da inscrição de dívida ativa (o que poderia ser feito por lei ordinária). Não se pode, contudo, aceder a esse entendimento.
Definitivamente, complemento não há! O que existe é uma discrepante medida de exceção, que surrupia do Judiciário a prerrogativa inerente à jurisdição (poder indelegável de restrição de bens). E, consoante oportunamente ponderado, isso fere de morte direitos de envergadura Suprema, como é o caso do devido processo legal e do direito de propriedade.
A indigesta Lei, portanto, revela-se verdadeiro presente Grego, cabendo aos operadores do direito, em especial aos advogados tributaristas, enfrentar essas questões nos Tribunais, a fim de corrigir o vício mencionado.
André Eduardo Campos
Núcleo Tributário
DJE Advogados Associados
Fonte: O primeiro tiro do ano: bloqueio de bens sem autorização judicial. Bruno de Ávila Borgarelli, doutor em Direito pela USP. Disponível em http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI272550,11049-O+primeiro+tiro+do+ano+bloqueio+de+bens+sem+autorizacao+judicial .