Tendo em conta que a listagem das impenhorabilidades objetiva a preservação de um mínimo patrimonial necessário à existência digna do executado, tem passado a entender a jurisprudência pátria que a prática de atos expropriatórios na lide executiva deve ser interpretada, também, à luz de certos direitos fundamentais (moradia, saúde, função social da empresa, dignidade da pessoa humana), de forma que, a depender do caso concreto, podem as hipóteses de impenhorabilidade ser estendidas/ampliadas para alcançar a proteção a sobreditas espécies de direitos.
Neste cenário, incumbirá ao julgador pontuar, no caso concreto, dizer sobre a possibilidade de aplicação da proteção da inconstritabilidade extralegal (principiológica), verificando a adequação e a necessidade da medida sob o enfoque da proporcionalidade e sopesando o que deve prevalecer: se o interesse patrimonial do credor ou se a proteção à existência digna do devedor.
Diante deste quadro e examinando a adequação e a necessidade da medida sob o enfoque da proporcionalidade, tem-se que o interesse patrimonial do credor deve ceder espaço, in casu, à proteção à existência digna do demandado, sempre que a situação in concreto deixar latente que a retirada dos bens de sua posse lhe trará toda a sorte de dificuldades, especialmente e principalmente aquelas inerentes ao resguardo de sua saúde, e, por conseguinte, à vivência de uma vida digna.
Têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa humana os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais comuns a todas as pessoas. [1]
Ingo Wolfgang Sarlet bem define a dignidade da pessoa humana [2]:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.
A dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, inerente à República Federativa do Brasil. Sua finalidade, na qualidade de princípio fundamental, é assegurar ao homem um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, de forma a preservar a valorização do ser humano.
Sendo a dignidade da pessoa humana um fundamento da República, a essa categoria erigido por ser um valor central do direito ocidental que preserva a liberdade individual e a personalidade, portanto, um princípio fundamental alicerce de todo o ordenamento jurídico pátrio, não há como ser mitigado ou relativizado, sob pena de gerar a instabilidade do regime democrático, o que confere ao dito fundamento caráter absoluto.
Nesse sentido, Flávia Piovesan diz que :
A dignidade da pessoa humana, (…) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.[3]
Diz ainda a autora que:
É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, dignidade da pessoa humana como verdadeiro super princípio a orientar o Direito Internacional e o Interno.[4]
Ainda nesse contexto de conferir à dignidade da pessoa humana um status de princípio fundamental, essencial, fonte de todo ordenamento jurídico brasileiro, manifesta-se o STF:
(…) o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo (…). [5] (grifou-se)
Logo, a dignidade da pessoa humana, se tomada como fundamento da República, princípio fundamental do ordenamento pátrio, norte constitucional, mínimo de direitos que garantem uma existência digna, não pode ser relativizada por constituir valor absoluto, vez que, nessa hipótese, o indivíduo é protegido por ser colocado em contraposição à sociedade ou ao Poder Público, portanto, em situação de vulnerabilidade.
O Princípio da Dignidade Humana é uma norma autoaplicável e de eficácia plena que ganhou elevada importância no Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, pois serviu de pilar para a construção dos direitos fundamentais.
A atual constituição reconheceu a prerrogativa de que todo ser humano deve ser respeitado como pessoa e de que não pode ter sua vida, corpo e saúde prejudicados. Adotar a dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito é reconhecer o ser humano como o centro e o fim do direito, esse é portanto o valor supremo absoluto da Constituição Federal.
Essa ideia inerente à pessoa constitui um mínimo invulnerável que deve ser assegurado por todo estatuto jurídico, sendo que a ordem econômica deve assegurar a todos uma existência digna e a ordem social deve ser responsável pela justiça social, garantindo educação, desenvolvimento e exercício da cidadania.
A partir do momento que se criou uma consciência de que o homem não é um objeto, entendeu-se que o ser racional precisa de uma proteção a si mesmo contra os atos cometidos pelos seus conviventes em situações de conflito, quando se perde parcial ou totalmente o discernimento.
Indissociável se torna, consequentemente, a vinculação entre o principio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, uma das bases do direito constitucional contemporâneo, mesmo nos ordenamentos cujo direito positivo ainda não reconhece expressamente a dignidade.
Segundo Fahd Awad:
Pode-se afirmar que o poder público, as instituições sociais e particulares, bem como a ordem jurídica, que não tratam com seriedade a questão da dignidade da pessoa humana não trata com seriedade os direitos fundamentais e, acima de tudo, não levam a serio a própria humanidade.”[6].
Acerca da prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana sobre o interesse patrimonial da parte credora, encontra-se diversos precedentes dos Tribunais pátrios, valendo citar o que segue:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DESENTENÇA. PENHORA DE VEÍCULO AUTOMOTOR.RECURSO DO RÉU. BEM IMPRESCINDÍVEL PARAREALIZAÇÃODEATENDIMENTOSMÉDICOSDOAGRAVANTE, PESSOA IDOSA E PORTADORA DEDEFICIÊNCIA FÍSICA. AUTOMÓVEL ESSENCIAL ÀSNECESSIDADES BÁSICAS E À EXISTÊNCIA DIGNA DODEVEDOR. FUNDAMENTO DA DIGNIDADE DA PESSOAHUMANA. INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA E EXTENSIVADOCONCEITODEBEMDEFAMÍLIA.DECISUMREFORMADO. RECURSO PROVIDO. [7]
Conclui-se deste modo, que os aplicadores do direito têm se mostrado sensíveis à questão, no sentido de considerar as necessidades especiais e as particularidades de cada caso concreto, respeitando o princípio da dignidade da pessoa humana em detrimento do direito patrimonial, quando o assunto se trata de impenhorabilidade de bens.
Destaca-se por derradeiro, que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado n. 183/2016, de autoria do Senador Romário (PSB/RJ), cujo objetivo é tornar impenhorável o veículo da pessoa com deficiência, impedindo que este responda por dívidas civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, o que demonstra a transformação do direito, com o fim de respeitar os direitos fundamentais previstos na Carta Magna.
Em sua justificativa, o Senador proponente do projeto, ao discorrer sobre a essencialidade do veículo para a pessoa com deficiência, expôs que “(…) torna-se ainda mais evidente, no contexto de nosso País, que, longe de consistir em luxo ou privilégio, a propriedade sobre um bem automóvel constitui, em última análise, para esses nossos concidadãos, legítimo veículo – na acepção mais ampla do termo – para o exercício da cidadania”.
De todo o apanhado supra, conclui-se que doutrina e jurisprudência pátria vêm adotando a interpretação ampliativa do rol constante do art. 833 do CPC, especialmente quando no caso concreto, a constrição judicial viola a Carta Magna, pois, como afirma Cândido Rangel Dinamarco, ‘não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas’” [8]
Raquel Wollert
Advogada OAB/SC 17234
Dean Jaison Eccher Advogados Associados
Referências:
[1] MIRANDA apud SIQUEIRA CASTRO, p.174
[2] 2001, p.60
[3] 2000, p. 54
[4] 2004, p. 92
[5] HC 95464, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 03/02/2009, DJe-048 DIVULG 12-03-2009 PUBLIC 13-03-2009 EMENT VOL-02352-03 PP-00466
[6] AWAD, Fahd. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Justiça do Direito, Passo Fundo, V. 20, N. 1, P. 119, 2006
[7] TJSC, Agravo de Instrumento n. 4011197-11.2018.8.24.0000, de Ibirama, rel. Des. Andre Luiz Dacol, j. em 30.08.18
[8] Relativizar a coisa julgada material. Informativo Incijur, Joinville, n. 29, p. 5, dez. 2001