Instigados por um excelente artigo publicado neste portal, o qual inclusive fez alusão a um ícone da cultura pop, o filme Minority Report, nos lançamos à tarefa de apresentar alguns contrapontos, a fim de oferecer aos leitores uma mais ampla visão sobre os aspectos que permeiam essa importante discussão que já não é mais de interesse somente do Direito Tributário, mas também dos ramos Financeiro, Constitucional, Processual e, possivelmente, até da Filosofia do Direito.
O ano é 2021. O fato de ainda estarmos debatendo no RE 574.706 a controvérsia iniciada em 2006, sobre a vedação da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, já é por si só fatigante e inacreditável, algo que nos remete a um outro clássico da cinegrafia pop, o filme “A História sem Fim” (“NeverEnding Story”, no original, ou, simplesmente, “A História Interminável”, como de forma mais direta foi batizado em Portugal), produzido em 1984 (ano que, por sua vez, remete ao título de outra obra de ficção científica, até mais famosa e cada dia mais atual, mas que não será tema deste artigo).
Diferente dos clássicos infanto-juvenis que, via de regra, sempre terminam com um final feliz (o chamado happy ending nos uplifting movies), alguns movimentos insólitos ameaçam transformar subitamente os momentos finais deste longa tributário em uma espécie de filme de terror para os contribuintes, algo mais afeito à cinessérie Sexta-Feira 13 (1980), em que o malsinado vilão, mesmo após derrotado, morto e até sepultado, sempre retornava em busca de vingança.
Acreditamos, contudo, que o julgamento do RE 574.706 não deve, nem precisa, terminar assim, a despeito das respeitáveis vozes em sentido contrário que insistem em sussurrar, para além da linha de sombra e, principalmente, do alcance da visão dos contribuintes.
Focaremos na principal questão, e mais controversa, dos embargos que é, a nosso ver, a da modulação (até porque, a questão da quantificação da exclusão do ICMS – se o “destacado” ou o “recolhido” – apresenta-se como um debate estéril, artificialmente engendrado pela Solução de Consulta Interna Cosit 13/2018 e que, ao contrariar a solução expressa e cristalina constante da LC nº 87/1996, parece ter vindo, assim como o saudoso palhaço Chacrinha, somente “para confundir e não para explicar”, conforme já desmistificado aqui).
Pois bem. No exame da questão da modulação, deve-se atentar para os seguintes pontos:
- Teoria da nulidade da norma inconstitucional;
- Ônus de demonstração da efetiva mudança de jurisprudência; e
- Questões que não podem ser consideradas como motivos legítimos para se justificar a modulação.
a) Teoria da nulidade da norma inconstitucional
A teoria da nulidade é o ponto de partida de qualquer discussão sobre modulação. Isso porque a inconstitucionalidade em nosso sistema é vista como vício de origem e a decisão que a reconhece tem eficácia declaratória ex tunc, conforme tradição do Direito Constitucional brasileiro que antecede à a Constituição de 1988 e vem sendo mantida pela jurisprudência do STF, em textual:
“Dentro dessa concepção, reveste-se de nulidade o ato emanado do Poder Público que vulnerar, formal ou materialmente, os preceitos e princípios inscritos no documento constitucional. Um ato inconstitucional do Poder Público é um ato nulo, desprovido, consequentemente, no plano jurídico, de qualquer validade e conteúdo eficácia. (…) A formulação clássica do juiz Marshall – John Marshall –, na histórica decisão do caso Marbury vs. Madison (1803), antecipava esse juízo. Para o Chief Justice, um ato do Poder Legislativo, que ofenda a Constituição, é ‘void’, nulo.” (ADI 466 MC, relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 03/04/1991, DJ 10-05-1991).
A par dessa regra geral, como se sabe, ao final dos anos 90 a própria legislação passou a prever expressamente o instituto da modulação, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/1999, o qual permite, nas hipóteses de declaração de inconstitucionalidade, que os efeitos dessa declaração sejam restringidos, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social, observado o quórum de dois terços dos membros da Corte, o que também foi estendido ao controle difuso.
O art. 927, § 3º, CPC/2015, ao disciplinar a hipótese específica de modulação por alteração de jurisprudência, complementou a regulamentação do instituto, fundamentado na segurança jurídica e no consectário interesse social que a proteção desta envolve.
No caso em tela, os embargos de declaração interpostos pela Fazenda Pública buscam a modulação da declaração de inconstitucionalidade primeiramente por razões de segurança jurídica (alteração de jurisprudência) e secundariamente por questões financeiras.
Dentro desse contexto, a questão deve ser objetivamente analisada, a fim de saber se, de fato, a Fazenda Pública desincumbiu a contento do ônus de provar a existência de efetiva mudança de jurisprudência.
b) Ônus de demonstração da efetiva mudança de jurisprudência
Reexaminando o artigo citado na introdução, percebemos que o autor propõe um recorte temporal bastante interessante que divide os julgados em três momentos distintos, baseado no suposto grau de evolução do nosso sistema de precedentes.
No presente artigo, propomos delimitar as fases de evolução da controvérsia por critérios objetivos, baseados nas datas dos principais julgamentos do plenário do STF sobre a matéria, o que nos afigura mais adequado para o exame da questão da modulação:
Período anterior a agosto/2006, quando não havia precedente concreto e específico exarado pelo plenário do STF examinando o mérito da questão constitucional, mas tão somente julgados esparsos negando a existência de questão constitucional;
De agosto/2006 até outubro/2014, quando foi admitido o primeiro caso pelo plenário do STF, o RE 240.785, de relatoria do min. Marco Aurélio, e no julgamento do mérito formada a maioria contrária à Fazenda Pública (6 x 1), muito embora não tenha sido concluído em virtude do pedido de vista do min. Gilmar Mendes.
De outubro/2014 até 2017, quando foi finalizado o julgamento do RE 240.785 pelo plenário do STF, com ampla maioria, vencidos somente os mins. Eros Grau e Gilmar Mendes, e assim reconhecida a vedação da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e Cofins.
A partir de 2017, quando foi concluído o julgamento do mérito do RE 574.70, já sob o regime da repercussão geral, estando pendente no presente somente o julgamento dos embargos de declaração interpostos pela Fazenda Pública.
No primeiro momento, anterior a agosto/2006, não é possível identificar precedentes específicos do plenário do STF analisando o mérito da questão constitucional em tela. Nesse período, há somente julgados esparsos de ambas as turmas negando conhecimento a recursos extraordinários por entender que a matéria não era constitucional.
A despeito da eventual relevância que as decisões que assentam a ausência de matéria constitucional possam assumir em determinados casos, o fato é que o STF não tem se mostrado sensível a esse tipo de situação. Apreciando contexto jurisprudencial análogo, no caso da isenção de Cofins para as sociedades prestadoras de serviços profissionais (RE 381.964 e RE 377.457), o pedido de modulação foi recusado pelo STF, a despeito das prévias decisões de não conhecimento exaradas pela própria Corte e ainda da matéria haver sido inclusive previamente sumulada pelo STJ, no verbete 276, em sentido favorável ao contribuinte.
Assim, o contexto anterior a 2006 parece pouco relevante, seja porque não apresenta uma manifestação inequívoca do plenário do STF enfrentando o mérito da questão, seja porque ficou definitivamente superado no segundo momento, a partir de agosto/2006, quando houve clara sinalização pelo plenário da Corte de que a matéria era constitucional ao se conhecer do RE 240.785.
O terceiro momento, a partir de outubro/2014, em que é definitivamente julgado o mérito do RE 240.785 e determinada a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e Cofins, é também de extrema relevância para o debate sobre a modulação.
Tal julgamento de mérito pelo plenário se deu sem reconhecimento de repercussão geral, mas por questões meramente temporais, isto é, dado que o recurso extraordinário foi interposto antes da vigência da Lei 11.418/2006 que regulamentou o instituto introduzido pela EC 45/2004.
Sem prejuízo disso, não se pode desconsiderar que as decisões do plenário do STF em controle difuso já ostentavam, mesmo nessa época, importância inegável, na esteira das sucessivas alterações legislativas e da progressiva mutação da interpretação constitucional que culminou no reconhecimento da sua força expansiva e eficácia ultra partes, que foram consolidadas pelo CPC/2015 (para um histórico dessas sucessivas alterações e da progressiva mutação constitucional, vide a Rcl 4335, especialmente os votos dos min. Relator Gilmar Mendes e do min. Teori Zavascki).
É dizer, o nosso sistema de precedentes, embora seja uma obra ainda inacabada, sempre imperfeita e em constante reconstrução, não se inicia com o CPC/2015, mas sim o precede, a partir de uma série de pequenas evoluções legislativas e jurisprudenciais acumuladas ao longo tempo.
Nesse contexto, nada autorizava que a Fazenda encarasse o julgamento do mérito do RE 240.785 em 2014 como um “simples aborrecimento” para si em virtude de um suposto “golpe de sorte” do contribuinte, posto que as decisões do plenário do STF em controle difuso, mesmo não apresentando eficácia erga omnes, já eram relevantes e produziam consequências ultra partes, sendo levadas bastante a sério pelos jurisdicionados em geral, inclusive para fins de provisionamento.
De todo modo, mesmo abstraindo-se mentalmente o julgamento do RE 240.785, não se pode identificar nos embargos de declaração interpostos no RE 574.706 qualquer outro precedente concreto e específico, emanado pelo plenário do STF, que tenha analisado o mérito da questão em sentido favorável à Fazenda Pública e sirva para embasar de forma suficiente um pedido de modulação por alteração de jurisprudência.
Na ausência de um tal precedente concreto e específico em sentido contrário à orientação contida no RE 574.706 julgado em 2017, deve-se reconhecer a aplicação da teoria da norma ou interpretação inconstitucional e a eficácia retroativa da decisão que a reconhece.
Em verdade, nesse deserto de precedentes específicos favoráveis à Fazenda Pública que suscitou modulação, o julgamento do RE 240.785, emitido pelo plenário do STF, mesmo sem repercussão geral, deve ser visto em si como mais um vetor que se soma ao RE 574.706 e opera a favor da aplicação da teoria nulidade, ou seja, da eficácia ex tunc da declaração (norma inconstitucional = void), e não contra ela.
Em outras palavras, a Fazenda Pública não se desincumbiu do ônus de demonstrar a existência de uma efetiva mudança de jurisprudência (consubstanciada na superação de um ou mais precedentes concretos e específicos), mas apenas um cenário de grande indefinição em que, pela lógica tradicional do controle de constitucionalidade, deve prevalecer a regra geral da nulidade.
c) Questões que não podem ser consideradas como motivos legítimos para se justificar a modulação
Questões puramente fiscais (ou mais precisamente de irresponsabilidade fiscal, conforme bem esclarecido aqui) ou ainda relacionadas a pandemia da Covid-19 ou ao estado de calamidade pública dela decorrente, não podem, nem devem, no contexto do presente julgamento, ser consideradas como motivos legítimos para se justificar a modulação.
A pandemia da Covid-19 é um evento insólito, grave e lamentável pelas irreparáveis vidas perdidas. A natureza generalizada do choque – que não respeitou fronteiras de países, cidades, etnias, nem classes sociais – foi responsável pela decretação de estado de calamidade pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo 6/2020), além da imposição de limitações necessárias à liberdade das pessoas e dos negócios, como nenhuma outra crise antes vista neste país, com efeitos deletérios para a economia e sobretudo os empregos.
Contudo, é exatamente esse grave impacto horizontal da pandemia sobre as empresas e, principalmente, os empregos, que torna ilegítima a aplicação da modulação, pois tal medida equivaleria a legitimar o confisco exclusivamente às custas dos contribuintes também vitimados pela crise e que, diferente da União, estão sujeitos à falência e ao desemprego, por não serem emissores de títulos públicos federais, quanto menos detentores do Poder Soberano de Tributar.
Em conclusão, o STF deve honrar a sua promessa institucional como guardião da Constituição, inclusive em matéria tributária. A decisão do RE 574.706 deve se manter nos seus exatos termos. As partes, Poderes e órgãos públicos envolvidos, inclusive seus eventuais responsáveis, deverão extrair do caso lições aprendidas, sem punitivismos.
Chegou a hora de a Corte Suprema concluir a sua missão de julgar o caso, sem ceder à tentação de sacrificar inocentes por um suposto benefício utilitário maior, pois, ao fazê-lo, estaria em verdade sacrificando o que nos resta de mais precioso: a própria Constituição Federal de 1988.
Por outro lado, uma modulação desarrazoada vai atrair mais críticas sobre o papel e a atuação da Corte. Pode-se até dizer que isso é inevitável, faz parte da função. Contudo, para a Fazenda Pública, contribuintes, empresários e investidores, será emitida uma sinalização clara: em caso de dificuldades, o Estado Brasileiro pode se locupletar.
Isso derrubará a confiança dos contribuintes nos Poderes Executivo e Judiciário, assim como incentivará outros governos, de todas as esferas, a explorar estratégias semelhantes, a chamada “inconstitucionalidade útil”, deteriorando ainda mais a nossa situação fiscal e o ambiente de negócios, e solidificando os fundamentos do nosso baixo crescimento.
Ainda há tempo para fazer a escolha certa e salvar o nosso legado constitucional. As próximas gerações, que escreverão sobre o STF nos livros de história do Direito, julgarão como a Corte será lembrada.
Fonte: Jota – https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/re-574706-a-historia-sem-fim-e-a-teoria-dos-precedentes-11052021