André Eduardo Campos
A discussão (jurídica) sobre a utilização do processo penal como sanção política e/ou instrumento de coação ao pagamento de tributos não se findou com o julgamento do HC 339.109/SC pelo STJ.
segunda-feira, 3 de setembro de 2018
Reunidos em seção para julgamento do Habeas Corpus (HC) 399.109/SC, a maioria dos ministros das Quinta e Sexta Turmas do Superior Tribunal de Justiça decidiu que a conduta daquele que deixa de recolher ou repassar dolosamente aos cofres públicos tributo descontado ou cobrado de terceiro, na qualidade de sujeito passivo da obrigação, caracteriza o tipo penal do art. 2º, II, da lei 8.137/90, independentemente da ocorrência de substituição tributária ou de operações próprias, uma vez que em ambos os casos o contribuinte de direito não sofre o ônus financeiro.
Com isso, supera-se um dos argumentos utilizados para descaracterizar referido crime – o de que o não pagamento do ICMS declarado não configurava a conduta deixar de recolher valor de tributo descontado e/ou cobrado, porque o tributo estadual inadimplido é aquele apurado após encontro de créditos e débitos, e não aquele cobrado ou descontado diretamente do consumidor final.
No entanto, ao contribuinte ainda restam outros fundamentos igualmente sólidos. A propósito, veja-se:
Princípio da mínima intervenção do direito penal.
Os princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade revelam que o Direito Penal é última ratio à proteção dos bens jurídicos que tutelem lesões efetivamente gravosas e expressiva relevância aos cidadãos e à coletividade.
O Direito Penal é fragmentário e não se presta à proteção de todos os bens, mas apenas dos mais importantes à convivência social.
Desse modo, a ação penal não pode ser utilizada pelo Estado como instrumento arrecadatório e coercitivo, forçando o contribuinte ao pagamento ou parcelamento de débitos que naturalmente já possuem o meio adequado de cobrança, no caso, a lei 6.830/80 – Lei das Execuções Fiscais.
Afora isso, imprescindível anotar que os crimes tributários comportam a extinção da punibilidade do agente mediante a quitação do débito que desencadeou a ação penal.
Noutros crimes, todavia, essa façanha, que juridicamente é conhecida como arrependimento posterior, possibilita apenas a diminuição da pena em eventual condenação e, anote-se, desde que ocorrida antes do recebimento da denúncia.
Com efeito, ao atribuir ao arrependimento posterior força de extinção da punibilidade do suposto autor do crime tributário, a lei desvirtuou a finalidade do instituto. Retirou-lhe, pois, a tipicidade material.
Isto só confirma que o procedimento penal, na espécie, é utilizado para coagir o devedor ao pagamento dos tributos.
É que, em síntese, a quitação da dívida, até mesmo depois de transitada a sentença condenatória1, é o suficiente para extinguir a punibilidade do suposto infrator e apagar os efeitos da respectiva condenação.
Nesse contexto, sendo o direito penal a última ratio, ou seja, uma medida excepcional, não há espaço para cobrança de dívida no âmbito penal, sobretudo quando proporcionado tratamento liberatório (extinção da punibilidade pela quitação) incompatível com todas as demais infrações penais existentes no ordenamento jurídico brasileiro2 .
Desse modo, inequívoco o interesse arrecadatório do Estado, não há espaço para considerar como criminosa a conduta decorrente da inadimplência do ICMS devidamente apurado e declarado.
Julgamento do ARE 999.945/SC no STF.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 999.9453/SC, por maioria, nos termos do relator ministro Ricardo Lewandowski, declarou a constitucionalidade da conduta prevista no art. 2º, II, da lei 8.137/90.
Assim, não há espaço para alegação de que o tipo penal ofende a proibição de prisão por dívida civil assegurada no art. 5º, LXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88).
Ao fundamentar sua posição, o e. relator consignou que o tipo penal previsto na lei 8.137/90repreende condutas cuja finalidade seja a sonegação tributária (falsas declarações e informações incompletas), conforme se vê do seguinte trecho do voto de Sua Excelência:
Dessa forma, as condutas tipificadas na lei 8.137/90 não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos, mas aos atos praticados pelo contribuinte com o fim de sonegar o tributo devido, consubstanciados em fraude, omissão, prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis (…) – original sem destaques.
Para o Supremo Tribunal Federal (STF), portanto, a configuração do crime do art. 2º, II, da lei 8.137/90 requer, impreterivelmente, a ocorrência de fraude/falsificação. Esta peculiaridade, entretanto, não está presente na inadimplência de ICMS devidamente apurado e declarado.
O referido ARE ainda não transitou em julgado, porque pendem de julgamento os embargos de declaração opostos pela Defensoria Pública, os quais objetivam a correção de contradição, com subsequente declaração de inconstitucionalidade parcial do artigo 2º, II, da lei 8.137/90, com o reconhecimento de atipicidade da conduta que não esteja permeada de fraude/falsificação.
Como se pode ver, a discussão (jurídica) sobre a utilização do processo penal como sanção política e/ou instrumento de coação ao pagamento de tributos não se findou com o julgamento do HC 339.109/SC pelo STJ. A guerra continua!
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1 STJ – HABEAS CORPUS N. 362.478 – SP (2016/0182386-0), Rel. Min. Jorge Mussi, J. 14.9.2017.
2 Ressalvados as hipóteses submetidas aos institutos despenalizadores criados pela lei 9.099/95.
3 Que teve repercussão geral reconhecida, sendo, portanto, aplicável a todos os casos análogos (CPC/15, art. 1.040).
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*André Eduardo Campos é advogado em DJE & Advogados Associados.